Por que escrevo?
Escrevo para não morrer.(José Saramago)
MEMÓRIAS DA FLOR DE UM MENDIGO
Acordei várias vezes somente
com a folha branca em baixo de meu travesseiro. E nos sonhos de poeta, encontrei-me
com um ser vestido de todas as dores do mundo. Ele carregava a garrafa de vinho
seco na mesa.
Não tive nenhuma
compaixão por suas dores porque assemelho ao teu olhar cheio de ocultismo
dissimulado que vai se transformando em poesia fecundada.
Senti-me obrigada a
pegar o papel rasgado como o véu sagrado e escondi-o no rosto da multidão das
palavras. Elas subiram no palco da minha escravidão de maldita e forçaram-me a
embriagar de versos e vomitar o gosto do vinho. Por isso, sou tal como o mendigo
que me presenteou com a flor vermelha.
Tomei a garrafa do
mendigo e comecei a beber as palavras, no instante em que subia no palco de
minha escravidão. Elas, aos poucos, vão tirando o véu transparente de meu corpo
que, antes era sagrado, e agora parece um Eros retorcido. E a minha fraqueza humana
não consegue sequer escrever um poema que o mendigo trouxe na ponta de meu lápis.
No entanto, aos goles
e soluços, o mendigo implora por um pedaço de palavra que espera ser poesia. Mas
a poesia, essa fera que me doma, soterra minha existência sem razão. Zomba de minha
existência moribunda e inútil toda vez que eu quero ser poeta.
Como não tenho saída,
entrego-me no barro na busca de que Deus refaça meu ser no entulho e modele
minha alma para ser canção. Pressinto o cheiro do mendigo que vai se mesclando
a minha alma sangrando. Ele fica mudo, inerte e não se move. De
repente, ele abre o roupão e começa a distribuir a poesia de seu corpo. Uma
poesia que não oculta e nem dissimula, não aquece e nem ilumina meu pranto.
Ouço a voz rouca e
inevitável do mendigo no escuro. A flor brilha mais que a utopia no asfalto. Com
as pétalas esmagando-se uma a uma, o mendigo vai cantando a valsa e me tirando
do pesadelo. Ele torna-me sujeito lírico de sua fome por versos que eu não
consegui escrever. E ele diz-me que eu preciso sair do pesadelo que é a vida
humana. É preciso ser feliz por inteira. Ele sempre me aponta para a FLOR. Mas
a flor zomba de minha utopia e sorri de meu camuflado cinismo diante da vida.
Ao final de meus
devaneios, o mendigo direciona-me para a imagem de um rio que já correu pela
terceira margem, onde vejo também, uma menina do lado de lá, escondida atrás de
um embondeiro de pássaros, e me diz as seguintes palavras:
Eu sou a porta aberta
para o mundo
Sou o mendigo que
passou por ti
Com o saco de
palavras nas costas.
Sou a gota de poesia disfarçada
de FLOR.
Eu sou o Verbo de Deus
que tua pena não viu.
Sou o Menino Jesus que
dorme contigo sempre
E ao raiar do dia
esconde no manto das galáxias.
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