Por que escrevo?
Escrevo para não morrer.

(José Saramago)

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

MEMÓRIAS DA FLOR DE UM MENDIGO


 Acordei várias vezes somente com a folha branca em baixo de meu travesseiro. E nos sonhos de poeta, encontrei-me com um ser vestido de todas as dores do mundo. Ele carregava a garrafa de vinho seco na mesa.

Não tive nenhuma compaixão por suas dores porque assemelho ao teu olhar cheio de ocultismo dissimulado que vai se transformando em poesia fecundada.

Senti-me obrigada a pegar o papel rasgado como o véu sagrado e escondi-o no rosto da multidão das palavras. Elas subiram no palco da minha escravidão de maldita e forçaram-me a embriagar de versos e vomitar o gosto do vinho. Por isso, sou tal como o mendigo que me presenteou com a flor vermelha.

Tomei a garrafa do mendigo e comecei a beber as palavras, no instante em que subia no palco de minha escravidão. Elas, aos poucos, vão tirando o véu transparente de meu corpo que, antes era sagrado, e agora parece um Eros retorcido. E a minha fraqueza humana não consegue sequer escrever um poema que o mendigo trouxe na ponta de meu lápis.

No entanto, aos goles e soluços, o mendigo implora por um pedaço de palavra que espera ser poesia. Mas a poesia, essa fera que me doma, soterra minha existência sem razão. Zomba de minha existência moribunda e inútil toda vez que eu quero ser poeta.

Como não tenho saída, entrego-me no barro na busca de que Deus refaça meu ser no entulho e modele minha alma para ser canção. Pressinto o cheiro do mendigo que vai se mesclando a minha alma sangrando. Ele fica mudo, inerte e não se move. De repente, ele abre o roupão e começa a distribuir a poesia de seu corpo. Uma poesia que não oculta e nem dissimula, não aquece e nem ilumina meu pranto.

Ouço a voz rouca e inevitável do mendigo no escuro. A flor brilha mais que a utopia no asfalto. Com as pétalas esmagando-se uma a uma, o mendigo vai cantando a valsa e me tirando do pesadelo. Ele torna-me sujeito lírico de sua fome por versos que eu não consegui escrever. E ele diz-me que eu preciso sair do pesadelo que é a vida humana. É preciso ser feliz por inteira. Ele sempre me aponta para a FLOR. Mas a flor zomba de minha utopia e sorri de meu camuflado cinismo diante da vida.

Ao final de meus devaneios, o mendigo direciona-me para a imagem de um rio que já correu pela terceira margem, onde vejo também, uma menina do lado de lá, escondida atrás de um embondeiro de pássaros, e me diz as seguintes palavras:

 Eu sou a porta aberta para o mundo

Sou o mendigo que passou por ti

Com o saco de palavras nas costas.

Sou a gota de poesia disfarçada de FLOR.

Eu sou o Verbo de Deus que tua pena não viu.

Sou o Menino Jesus que dorme contigo sempre

E ao raiar do dia esconde no manto das galáxias.

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