Ao poeta Isaac Ramos, meu
professor de Literatura.
Dedicar
um poema, um romance, um quadro, uma peça musical ou qualquer outra composição
artística a alguém tem sido um cerimonial desde a antiguidade, a exemplo das
Odes de Safo para Anactória, podendo perdurar sempiternamente. Entretanto,
poucos leitores veem na dedicatória uma expressão que comunica mais que o
simples fato do registro numa obra de arte. Por esta razão e pelo chamado da
palavra que habita em nossa alma de escravo feliz, abri a página branca para prosear
sobre a dedicatória e seus guardados.
Dedicar uma obra a alguém significa guardar a
pessoa com o apreço. E guardar tem vários sentidos para o poeta Antonio Cicero:
“Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar
por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela”.
Em consequência, dedicar equivale ao ato de conservar sentimentos que se tornam
históricos. Na dedicatória partilham-se sensações, paixões, gratidões, emoções
que passam a ter características subjetivas intransferíveis e sui generis.
A dedicatória, quiçá, tenha muito mais sentido para
quem a recebeu do que para quem redigiu. Receber uma dedicatória pode ser um
motivo de louvor, admiração, adoração, respeito e gratidão. Significa ter
deferência e fazer a diferença para alguém. O objeto dedicado, a matéria
primorosa para o artista, passa a ter um valor assaz real para a pessoa
homenageada, ainda que o autor nem tenha ciência dos caminhos que suas palavras
tomaram.
No mar português, lembro-me de Fernando Pessoa e
suas cartas endereçadas a Ofélia. Numa dessas cartas, Pessoa registrou a
relevância de guardar uma palavra escrita que é tão especial quanto uma
dedicatória. Assim o poeta escreveu: “Ophelinha, Não sei o que quer que lhe
devolva – cartas ou que mais. Eu preferiria não lhe devolver nada, e conservar
suas cartinhas como memória viva de um passado”. Conservar foi o verbo
usado por Pessoa e tem a mesma acepção de guardar ou reter na memória de quem
recebeu as cartinhas da amada.
Quando José Saramago dedicou A viagem do
elefante a sua deusa Pilar Del Rio, certamente, para ele, o sentido de
guardar era uma forma de gratidão, pois tal livro foi retomado graças a ela.
Segundo o escritor português, Pilar esteve ao seu lado para recuperar a saúde e
voltar ao projeto de escrita da história. Dedicar o livro a amada foi uma forma
de dizer: “Você, meu amor, faz parte desta realização. Sem você eu não
escreveria este livro”. E isso serve para todos os autores que dedicam
obras artísticas a um ser precioso que vê o ato como uma celebração de maior
patrimônio e, por tal atitude, a pessoa decide guardar, fitar, velar,
vigiar ao ponto de reter o tempo e eternizar o objeto guardado. E não precisa
ser um livro com cartão perfumado, pode ser uma simples lembrança do dia das
mães, um vaso com as seguintes palavras: “Ofereço à melhor mãe do mundo”.
Toda mãe guardará essa singela lembrança numa estante como se fosse melhor que
um quadro pintado por Leonardo da Vinci.
Gonçalves Dias dedicou os versos do poema Ainda
uma vez adeus a sua musa Ana Amélia e esse presente ficou na memória da
literatura, pois nas páginas da obra estão gravadas a figura da mulher amada e
o amor inatingível nas seguintes palavras: “Enfim te vejo, enfim posso
curvado a teus pés dizer-te, que não cessei de querer-te”.
Não tão diferente de Vinícius de Moraes, outro
admirador das mulheres, Castro Alves, segundo Jorge Amado, em ABC de Castro
Alves, escreveu obras poéticas tão imensamente banhadas pela dedicatória
amorosa. Só para citar os três de seus amores: Eugênia, Idalina e Leonídia
Fraga. Ainda hoje, as dedicatórias não perderam os valores românticos e
afetivos por conta da intensidade do verbo guardar. Para Eugênia, Castro Alves
dedicou os versos: “Fiz de meus versos a púrpura escarlate/Por onde ela
pisasse em marcha triunfal”. Ao final de sua vida carregada de sensibilidade,
o poeta condoreiro consagrou versos às mulheres que amou: “Mulheres que eu
amei. Anjos louros do céu! Virgens serenas! Madonas, Querubins ou Madalenas!
Surgi! Aparecei!”. O sentimento do amor perdurou e não envelheceu na ação
de guardar, tornando a atitude romântica uma forma legítima de que dedicar algo
a uma pessoa significa provar que a amamos ou que tenhamos estima especial por
ela.
Charles Baudelaire, depois de ter apaixonado pela
mulata Jeanne Duval, com quem viveu uma paixão
arrebatadora, abominada pela mãe, dedicou a tal paixão o ciclo de poemas
"Vênus Negra” que, a rigor, ficou armazenado na história de vida do poeta
de Flores do mal.
Seja romântico ou moderno, dedicar é homenagear,
não necessariamente a uma parceira amada, tendo em vista que João Cabral de
Melo Neto confeccionou vários poemas a Joaquim Cardozo, celebrando tributos a
um poeta com quem soube aprender no que diz respeito aos poemas para vozes,
poemas sobre o Recife e daqueles considerados de linhagem lírica a palo
seco.
Manoel de Barros dedicou poemas a Bernardo da Mata
e esse figurará para sempre em sua poesia lírica e na memória do leitor. Logo,
para Manoel, dedicar é esmiuçar, transver, fazer com que uma pessoa
desimportante transluza ao ponto de torná-la mais célebre que um pássaro
pousando no mais alto rochedo.
É assim que louvo a dedicatória, como um ato de
solenizar, guardar, celebrar, agradecer, lembrar e reconhecer. Conforme escrito
alhures, a dedicatória passa a ter muito mais importância para quem a recebeu
do que para quem escreveu. Lembro-me de que, em 2001, escrevi um poema em
homenagem a um poeta querido, assim como já escrevi para muitos e nem sei o
destino e os maus julgamentos que fizeram deles. Acidentalmente, o poema
desapareceu da memória de meu computador. Eis que, comentei o incidente
com o poeta e ele, salvo pela tecnologia, me enviou o poema por e-mail,
em 2008, pois estava guardado a sete chaves. A ação da pessoa que guardou o
poema emocionou-me muito, uma vez que eu não sabia do real valor de minhas
palavras a quem os versos foram tributados. E veja que nem foi para um namorado
e nem um poema romântico. Foi simplesmente uma singela homenagem ao melhor
professor de literatura que encontrei durante a minha licenciatura. Resgato o
poema como se o passado fosse agora, a fim de arquivá-lo em sua essência, ainda
que, se não fosse pelo ato de celebração intransferível, eu reescreveria os
versos, reorganizando a pontuação e cortando palavras, já que o grande mestre
dos poetas me ensinou que “escrever é como catar feijão e devo jogar fora os
grãos que boiar”. Porém, em decorrência do valor de guardar a coisa e
vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, segue o poema ipsis litteris,
certa vez dedicado, uma vez guardado:
Um
mestre indígena
Era um índio com olhos mui negros
Cujos cabelos são como a tinta do carvão.
Não era índio Mestre, índio em terra alheia
Muito mais dono que o criador.
Índio sábio! Audaz como pássaro preto
Que chega subitamente e domina
os traiçoeiros!
Índio que me ensinou a ler versos
sem ter nada escrito.
Não... não precisa expor as vergonhas saradas
Para revelar os mistérios de um poema!
Basta a nudez de teu olhar espiral...
Um sinal no sorriso.
É preciso amar símbolos e gostar de ser índio.
Índio sem barulho, sem ventos e sem matas...
Mas índio, Isaac, deve ter sangue na pena
E nas palavras selvando as plumas do poema.