A idéia oriunda de entrevistar o poeta Manoel de Barros nasceu quando eu trilhava o caminho da Pós-graduação Latu Sensu em Literatura Brasileira na UNEMAT e escrevia sobre O canto do insólito em Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto e Manoel de Barros. Meu ex- orientador de literatura chamado Isaac Newton Almeida Ramos, que também comparou a poesia de Manoel de Barros e Fernando Pessoa, concedeu-me o telefone do poeta. Em seguida, liguei e a dona Stella de Barros atendeu com maior simplicidade e concedeu-me o endereço. A segunda vez aconteceu em 2008, a partir da minha atual pesquisa de mestrado na UFG com o projeto Convergências poéticas: Manoel de Barros, João Cabral de Melo Neto e Corsino Fortes, com a orientação da Profª. Drª. Goiandira de Fátima Ortiz de Camargo.
Não encontrei nenhum obstáculo para entrevistar o poeta, uma vez que assim como Manoel de Barros, eu tenho horror a câmeras e microfones. Eu mesma pedi a entrevista por escrito porque dois tímidos não conversariam muito bem. Nunca iria conversar pessoalmente com Manoel de Barros e nem tenho objetivos para isso. Preferi amar a poesia dele estudando-a. Não iria falar com ele porque eu me sentiria pequena demais como ele se sentiu no Rio de Janeiro quando tentou falar com o Manuel Bandeira. Não foi difícil para mim e muito menos para Manoel. Tímidos se realizam melhor na escrita, na pintura e na música. A solidão de indivíduo é melhor para o poeta. Destarte, tudo que pedi ao poeta veio muito mais rápido que o vôo de uma garça no Pantanal mato-grossense.
Meu contato com a poesia de Manoel de Barros foi a partir do Livro sobre nada que li umas quatro vezes e justamente os “nadifúndios” que infinitam e celestam o poeta ficaram em mim. Depois li a Gramática expositiva do Chão: poesia quase toda e fiquei com a imagem do “tatu fodendo em cima da tatua”. Em seguida, O guardador de águas e vislumbrei com o poeta desejando “ficar mais porcarias nas palavras”, O livro das Ignorãças, dentre outros, e fiquei como uma adolescente que descobre o beijo e não quer mais parar. É assim que eu me sinto quanto à poesia de Manoel de Barros, não consigo deixá-la nas minhas investigações. Às vezes penso em não continuar com a poesia dele no futuro doutorado, mas pressinto que nasci para cumprir um papel de estudiosa de sua lírica. Saliento, por exemplo, que antes de sair o livro Poemas Rupestres ele escreveu-me dizendo que este poderia ser seu último livro que estava no prelo, na Editora Record. Eu fiquei dias imaginando a pedra, o rústico e a língua virgem, ou a linguagem em estado nascente da que fala Paul Valéry em Poesia e pensamento abstrato. Quando o livro saiu não tive dúvidas e pensei: “este será mais um livro para o meu mestrado”. Parece-me que a “disfunção lírica” dele me pegou de uma forma incomensurável. Confesso leitor, que imaginava “a palavra de brinco”, mas não pensei “no menino que se enfiaria “dentro de uma abelha pensando ser a infância da língua”. Voei fora da asa quando li Poemas Rupestres porque sempre gostei da palavra concreta e mineral. Hoje entendo que o momento certo para fazer o mestrado seria agora porque eu viria certamente a essas páginas falar das obras de Manoel de Barros. A teologia do traste foi o poema que tocou meu ser e vi no avesso de cada verso que Manoel de Barros tem ideias iluminadas, não as ideias abstratas concebidas, mas as concretas. Recordo a imagem fabulosa no poema Se Achante que se inicia com o discurso dos contos de fadas: “era um caranguejo muito se achante” que vinha “montado num coche de princesa”. Não há como não se encantar e se incorporar com essas palavras. Muito bem disse Manoel em Livro sobre nada que “poesia é voar fora da asa”. Não escondo que eu senti ciúme da obra Poemas Rupestres. Queria ser a primeira a ler ou a primeira a estudar. Sonho com as Obras Completas do senhor Manoel que talvez será meu objeto inteiro no doutorado que não tenho pressa, mas sei da minha continuidade com a poesia manoelina.
No começo, o interesse pela obra de Manoel de Barros nasceu pelo fato de eu ter errado justamente a questão no vestibular acerca do Livro sobre nada que eu tinha lido e relido. Queria entender esses “nadifúndios”, mas não sabia que “entender é parede”. Depois cresceu pelo simples biografismo do poeta nas entrevistas do jornalista Otavio Guizzo de Mato Grosso do Sul e da Berta Waldman e, sobretudo, pelas aulas de Análise da Poética, ministrada pelo professor Isaac que me ensinou a gostar do Manoel de Barros e amar mais a poesia lírica. Posteriormente, busquei saber o que os críticos falavam de Manoel. Li o comentário que o Alfredo Bosi escreveu sobre ele em História Concisa da Literatura Brasileira. Penso que Manoel de Barros e Cora Coralina foram marcados pelo esquecimento da crítica. Manoel sempre correu dos críticos. Mas há sempre um abençoado que leva a arte que já nasce com brilho, assim como o Carlos Drummond de Andrade falou de nossa goiana Cora e o Millôr falou do nosso Manoel. O tempo é engenhoso como escreveu Guimarães Rosa no conto Desenredo. Todavia, é o tempo o responsável pela eternidade do enredo desses bons poetas. A glória que o público chama de fama vem na hora certa, mas creio que a maior glória de um poeta reside na sensação orgasmática de cada verso escrito e lido. Prêmios nacionais e internacionais e comentários da crítica são consequências da própria obra que está condicionada ao tempo.
Hoje, creio que o desconhecimento de sua lírica já foi condicionado a esse tempo. Não vejo mais Manoel de Barros como um “nômade”. Creio que o Brasil tem públicos diferenciados de leitura e a obra dele requer, de certa forma, um público elitista. A poesia não é tão rentável, mas pelo número significativo de livros vendidos, para mim, ele é muito conhecido e pode chegar a ser cânone. Detesto esta palavrinha cânone porque Manoel de Barros é maior que toda essa discussão de grupos locais, nacionais e lero lero. Não precisa ser um Bernardo Élis na Academia Brasileira de Letras para ser lido e admirado. Que fique claro, não tenho nada contra os imortais da literatura na academia, muito menos contra o Élis dos goianos. Só creio que ficar discutindo o poeta/romancista como cânone empobrece a obra e distancia leitores, pois o que é realmente bom não precisa ser forçado. O tempo e os leitores se encarregam das boas respostas.
Eu disse acima que o leitor de Manoel é elitista. Sei que da mesma forma que a tragédia no mundo helênico era para um público superior, assim pode ser hoje a poesia de Manoel de Barros. Entretanto, não quero dizer que um leitor não-acadêmico não possa ler sua poética. Penso no leitor mirim, por exemplo, meu filho que ouviu o título da história do “menino que carregava água na peneira” e depois disse: “nossa que mentiroso é esse Manoel de Barros porque ele inventou essa história de água na peneira e a água não vai sair pelo buraco?”. Ou até mesmo o poema “Campeonato” do Fazedor de Amanhecer que o deixou encantado por meio da “disputa dos meninos que conseguiam urinar mais longe e davam inveja nas meninas”. Manoel de Barros é aclamado por leitores de todas as idades. O poeta é aclamado porque há um grande número de leitores que aprovam suas invenções e ficam na expectativa do próximo livro e nem precisa entrar para a Academia Brasileira de Letras porque a imortalidade de Manoel de Barros reside no “celestamento” de cada verso que ele escreveu. Em tom profético, acredito que a obra de Manoel de Barros ainda será objeto de muito estudo no Brasil e no mundo. O bem maior que é a sua poesia será lembrado nos bens do próprio poeta pelas gerações vindouras, tais como: “os fazedores de inuntensílios”, “um travador de amanhecer”, “uma teologia do traste”, “uma folha de assobiar”, “um alicate cremoso”, “uma escória de brilhante”, “um caranguejo todo se achante”, “um parafuso de veludo” e “um lado primaveril”, além do verso “poesia é voar fora da asa” e tantas outras heranças. No futuro tão próximo, vejo a poesia de Manoel de Barros consagrada e "canônica", eis a infeliz palavrinha novamente para agradar alguns e ferir meus ouvidos. Como a prosa poética do Guimarães Rosa, “Manoel de Barros não morrerá, ficará encantado”.
Eu diria àqueles que ainda não conhecem a obra de Manoel de Barros que procurem observar as “sobras do lixo e dos rios podres que correm por dentro de nós”, desse ser estilhaçado que perde a sua unidade interior, conforme citado na pesquisa A poesia alquímica de Manoel de Barros de Goiandira de Fátima Ortiz de Camargo. Em síntese, minhas memórias e descrições sobre o poeta Manoel de Barros residem em meus poemas e na minha pesquisa. Portanto, a mais fiel narrativa consta neste discurso de anamnesis e na entrevista editada por Dilson Lages no http://www.portalentretextos.com.br/ , conforme a autorização que recebi do poeta para divulgar sem nada acrescentar, distorcer ou transformar. Nunca disse a ninguém que sou fã de Manoel de Barros porque não é assim que vejo sua lírica. Vejo-a no plano da linguagem, da imagem poética e procuro investigá-la com subsídios teóricos ou até mesmo por bel-prazer, mas nunca fã porque detestaria me portar como seguidora de ator de novelas de TV. Eu sempre evito cair no “fanatismo bobo” porque acho ridículo e patético, perdoem-me os fanáticos em literatura. Qualquer narrativa distorcida que gerou a minha entrevista sobre o poeta tem sido má exegese de jornalistas que inventaram afirmações e grafaram por conta própria. Nesse texto está o meu retrato verdadeiro sobre a poesia de Manoel de Barros. Além de minhas memórias sobre o poeta, segue abaixo a homenagem no poema que enviei a ele e misturo aqui ao gênero de minha narrativa, já que é possível pensar no hibridismo de gêneros na literatura:
A BELEZA DOS INÚTEIS
(Ao poeta Manoel de Barros)
No pé da parede nascem ciscos de algodão
Fios
chiando surdamente no lixo da praça.
O útil e o inútil do chão valem mais que o fazer
O útil e o inútil do chão valem mais que o fazer
O inútil
traz mais beleza que a flor.
A flor é
o artista inconfessável.
É com a indiferença dos inúteis
É com a indiferença dos inúteis
que o
poeta ouve o canto do concreto
e toca no
avesso da cor do passarinho no fim da tarde.
É o poeta que faz uma borboleta voar parada
Tira suas
asas e depois ela vira lesmas
Fica
tonta de tanto criar plumas nas palavras.
E no fim aprende com a própria criança do poeta
que a
borboleta não voa no pé de algodão.
Vem a
outra criança e diz:
“A borboleta avoou no chão”.
Rosidelma Fraga – dezembro de 2008.