[Nota Prévia do Narrador: Ficção ou realidade, o conto se apresenta].
“Olho nenhum viu, ouvido nenhum ouviu, mente
nenhuma imaginou o que Deus preparou para aqueles que o amam” (Do Livro de
Coríntios, Capítulo 1, Versículos 2:9).
1999. Penúltimo
ano do século XX. Era um ano da celebração de casamento de Dora Lima. Pobre,
mas Feliz por ser poetisa de nascimento e não pretender se casar.
Dizia o vilarejo que Dora almejava ser
professora, ainda que de óculos grandes, magra, de seios fartos, olhos roxos e
miúdos de sono, mas queria demasiadamente o ofício, sonhava acordada, de saltar
de alegrias, de dormir na Biblioteca da Universidade do Estado de Mato Grosso.
Ser professora era a arma de que Dora dispunha
para mudar o universo com toda a poesia que leu desde a infância e com a poesia
que ela escondia nas chamas da alma.
Dora teve um
surto do dia para a noite e teve que, inconscientemente, se casar. Casou-se com
José Qualquer da Silva, um José cabisbaixo, pouco assunto, falso romântico, até
cuidadoso, para não dizer, sufocante e psicopata. Imagine você que está sentado
agora, leitor! Dora poetisa com um serzinho de sorriso forçado, olhar desconfiado
e pés fora do chão.
Dora arrependeu-se amargamente, mas, já era
tarde. Entrara, naquela noite, para a lista das mulheres que suicidam
diuturnamente quando se casam.
Dias depois,
Dora não se estarreceu com os cuidados de José Qualquer. Saiu em busca de seu
grande sonho. Foi professora desde quando amou Vozes da África pela primeira
vez. Leu Nélson Rodrigues numa só noite e se viu na tragédia psicológica de
Lídia, a mulher sem pecado. Dora sentiu-se tal como a viúva, porém honesta. Foi
castigada sem ter passado pela nudez. Viu-se nas acusações de Capitu, que não
tinha voz para revidar os castigos psicológicos de Bentinho.
Dora devorou a
obra Otelo para compartilhar o sofrimento de Desdêmona e esmagar o seu medo de
morrer sem voz. Dora era genuína no caráter, no sentimento e na certeza de que
o homem é o bicho devorador de si mesmo. No fundo, Dora quis fugir como fez
Lídia com Olegário, deixando um bilhetinho para José Qualquer.
Não obstante,
Dora não era tão forte e fugiria aos poucos. A sensibilidade de poeta, ao mesmo
tempo em que era a salvação para se livrar do suicídio, era também o leitmotiv
em que ela se aprisionava, chorando, versificando, contando haikais de amor que
nunca serão publicados, porque o marido, de alma doentia, botou fogo e forçou
Dora a não escrever. Decretou que Dora não amasse, mas o coração de Dora estava
dilatado demais para aceitar a lei do machismo. Esse era o maior suicídio que
Dora conheceu.
Não aceitou o ultimato contra a liberdade da
poesia. Era como ressuicidar-se. Escondeu-se na beira do Rio Araguaia e foi
escrever os livros e tentar resgatar os versos queimados. Ninguém lhe roubaria
o sonho de ser professora. Muito menos o dom de ser poeta. Dora viajou, cortou
rios e céus para subir os degraus.
Chegou feliz em
casa, toda arrebatada. Finalmente Dora tinha de ser a professora de literatura,
a poetisa do vilarejo que tirou todas as pedras no meio do caminho para
declamar Carlos Drummond de Andrade e ler Machado de Assis na sala de
aula. Mas Dora era pequena demais para
vencer o medo arrebatador de José Qualquer. Ainda tinha medo de verbalizar os
castigos.
A noite da
tragédia humana aconteceu meses depois da formatura de Dora e na primeira
semana em que ela se orgulhava de ser professora universitária. Sem piedade de
indivíduo, foi violentada, sofreu os golpes físicos, ficou toda machucada de
alma e escondeu os ferimentos por anos, por vergonha, por não saber para onde
ir, por medo de sofrer duas vezes ou sempre que fosse confessar que estava
condenada à morte por uma espécie de Iago mascarado de arcanjo...
Dora teve medo de morrer naquela noite, quando
era enforcada por José Qualquer. Mas, felizmente, o anjo de outras vidas, que
sempre acompanhou Dora, apareceu com seu cajado forte e José ficou sem forças,
ajoelhou-se pedindo perdão e suplicando amor. O que era o amor? O amor de José restringia-se
em posse corporal e humilhações. Ser dono do corpo de Dora era também uma
agressão moral e psicológica. Porque Dora não o amava mais. Sentia pena, medo e
arrependimento.
Dias depois,
Dora apareceu grávida. Apesar de todos os surtos de suicídio, esse
acontecimento era o único e grande motivo de que ela precisava para ter
companhia, conversar, ler poesia, ouvir música e sonhar que o amanhã seria de
livre-arbítrio.
Nasceu João Lima da Silva em 2003 e Dora tinha
a chama eterna da luz e do amor infinitos. Ser mãe era a força motriz de que
Dora tanto precisava para lutar contra as correntes da escravidão em pleno
século XXI.
Agora, Dora já
não era sozinha e podia sorrir sem medo de ser feliz como era antes de se
alistar para o suicídio. Aos poucos, o brilho foi tomando conta dos lábios da
professora Dora e José passou a perder o sobrenome.
João esteve com ela por longos anos. Dora
fugia de JQ aos poucos. E o medo, também aos poucos, ia desaparecendo e a seiva
ganhava corpo e voz.
O silêncio de
Dora já era gritante. A luta e o anseio por libertação empurravam-na sempre
para frente. Dora voltou para a Universidade e adquiriu respeito e voz como
professora. JQ foi perdendo as energias diante da coragem de uma nova Fênix que
nunca deveria ter se calado e muito menos ouvido as leis religiosas que tomam a
mulher por fonte de submissão.
Dora aprendeu também, com José Saramago, que a
honestidade é um princípio moral que o homem adquire de herança familiar e não
nas igrejas. A religião, muitas vezes, leva o homem a usar máscaras de bom
cidadão quando, na verdade, o amor e o respeito ao semelhante passam longe de
muitos que se mascaram em templos de adoração a Deus. São os falsos profetas e
os "anjinhos" querendo um céu que nem eles mesmos acreditam que
existe.
Por anos, Dora
era como Iauaretê. Falava com voz de bicho, sem ser compreendida. Todavia, chegou
o dia em que ela deixou de tartamudear como Augusto Matraga e gritou alto
demais em seu silêncio. Todo o grito veio depois que Dora leu na obra de
Guimarães Rosa, que o silêncio era a gente demais e depois de ler que quem
quiser atravessar um rio a nado não pode ficar tão entretido na ideia dos
lugares de saída e de chegada. Quem quiser atravessar um rio deve pensar que
“num ponto mais embaixo, bem diverso do que em primeiro se pensou (...) o real
não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da
travessia...”.
Sem medo das
constantes ameaças, requereu o divórcio em litígio (o que a igreja condena) e
sentiu que a sua liberdade só teria valor se fosse muito mais digna que outra
mulher. Sem ter para onde ir, ainda assim, Dora saiu com seus livros: a única
herança além dos mares navegados. Sentiu-se quase um Quixote de La Mancha.
Dora tornou-se a mulher que passa, canta feliz
porque é professora e pode ser uma poetisa livre, escrever versos de todas as
cores e fazer dedicatórias sem pedir nada em troca, porque amor foge a
dicionários e imposições. Amor é estado de graça. E, se é estado de graça, é
divino e é humano.E se o amor é
divino e humano, é o mesmo amor do menino Jesus que acompanhava o poeta Alberto
Caeiro quando guardava rebanhos.
Diante das
pressões familiares e das bocas impiedosas dos que se dizem religiosos, Dora
quase teve outro surto e, em vez de ir às margens do Rio Araguaia escrever
poesia, ela teve vontade de saltar na ponte que divide os estados de Goiás e
Mato Grosso, entre Santa Rita do Araguaia e Alto Araguaia, terra em que Dora Lima
nasceu, no dia 25 de dezembro, no Hospital Samaritano.
Os jornais de Mato Grosso fariam
sensacionalismo. Quem sabe os versos de Dora seriam declamados com uma marcha
fúnebre, ou com o Réquiem de Mozart e
até seria homenageada pela Academia Mato-grossense de Letras, já que os
chamados imortais não conheceram os escritos de Dora Lima.
Eis que, diante
das águas da ponte, com os pés posicionados para o segundo suicídio de sua
vida, Dora surpreendeu-se com a voz do anjo que a socorreu na noite em que JQ a violentou sem
piedade e por impulsos de ciúmes. Somente agora Dora consegue ver os olhos do
coração do anjo, que era um cego. O mesmo que aparecia nas noites para declamar
os versos de Vinícius de Moraes que ela nem adorava porque eram de amor e o
amor que Dora ouviu dizer era o poço negro de amargura.
O cego pedia
ajuda para atravessar a ponte. Foi assim que Dora conheceu o amor e o amor a
pegou de vez como contraiu Jó Joaquim na história Desenredo, escrita por João Guimarães Rosa, justamente no mês das
noivas, o calendário do amor, também o mês em que o cego nasceu.
Os curiosos em volta da ponte contaram para mim
essa história e eu reconto a narrativa aqui, nestas linhas finais.
Dizem que foi um poeta cego que libertou Dora
do suicídio de não ler poesia, de não falar de amor, de não sorrir com o
coração verde dos pássaros e descrever a cor da água do Rio Araguaia e a espuma
que formava nos dois rios entre Goiás e Mato Grosso e suas sagradas cachoeiras.
No mesmo rio, de onde fazia a imagem do espelho que dava para ver a outra
margem da vida após a morte e embalada pelos versos de Dora, ao som da música Travessia, de Milton Nascimento: “Eu não quero mais a morte. Tenho muito que
viver. Vou querer amar de novo. E se não der, não vou sofrer (...). Hoje faço
com meu braço o meu viver”. Como narradora testemunha, eu conto-vos,
leitores, essa história. Do narrador aos seus ouvintes. E o povo pergunta: “E
agora, José?”.
[Qualquer
semelhança entre a vida real e este conto pode ser, ou não, mera coincidência].