Por que escrevo?
Escrevo para não morrer.

(José Saramago)

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

ESCRITOS EM VERBAL DE AVE E A TRANSFIGURAÇÃO DE BERNARDO

ESCRITOS EM VERBAL DE AVE E A TRANSFIGURAÇÃO DE BERNARDO


[Opinião de leitura]


Hoje, ao receber o mais novo livro de Manoel de Barros e saborear sua poesia, recordei-me das seguintes palavras: “Meu desejo ou ideia fixa é esmiuçar a alma de Bernardo e o melhor de mim sou ele”, disse-me o poeta na conversa por escrito que tivemos anos atrás. Depois da visita às páginas de Livro de pré-coisas (1985), O guardador de águas (1989) e Menino do mato (2010), o leitor mais assíduo da poesia barreana, ao tocar os olhos deslumbrados em cada página colorida de Escritos em verbal de ave (2011), concordará que Bernardo, finalmente, passa da imanência à transcendência depois de sua sepultura:

“Deixamos Bernardo de manhã
em sua sepultura
De tarde o deserto já estava em nós”.
(EVA, 2011)


Bernardo marca seus escritos em murmúrios e cantos na tessitura dos trinta e dois escritos poéticos em voz de ave, alçando o voo das palavras que, em relações homológicas, se assemelham com desenhos. A escrita é representativa, icônica, metafórica, sinestésica e plástica:

“Desenho da voz
na areia
é verbal de ave”
(EVA, 2011)



Efetivamente, Bernardo era um guardador de águas em matéria de encurtamento de suas experiências e vivências com o rio. Nos verbais de sua morte, a voz é verbo, é força criadora porque instaura a comunicação entre o ser e a natureza, formando uma comunhão sagrada entre o homem e a poesia:

“Acho uma coisa
cândida
conversar com as águas”.
(EVA, 2011)


E na comunhão espiritual da poesia, Bernardo, o dementário e visionário de palavras ou o escritor de absurdez, transfigura-se como a imagem de Narciso no espelho, pois Bernardo, agora sem sobrenome, conversa com as águas e nela é refletido, tanto na poetização do discurso verbal de ave como na memória eterna do leitor. Curiosamente, o poeta Manoel de Barros já havia profetizado que Bernardo depois de virar árvore, entraria para o “Patrimônio Nacional da Humanidade”. Paulatinamente a morte do personagem, a memória dessa herança poética seria guardada nos inutensílios ou nos quinze desobjetos de seu acervo, último poema de Escritos em verbal de ave (2011), os quais podem ser lidos também em diálogo com Exercícios de ser criança, O fazedor de amanhecer e outras obras.
Em Livro de pré-coisas (1985), especificamente no poema NO TEMPO DE ANDARILHO, Bernardo era imitado pelos hippies e a pureza e inocência eram inatas a sua condição humana. Em Escritos em verbal de ave, Bernardo é tão somente ave, é símbolo da natureza da própria linguagem poética transfigurada ao nível da sensibilidade que o sujeito lírico barreano lhe confere:

“Palavra abençoada
pela inocência
é ave”
(EVA, 2011).


As insignificâncias, o abandono e as coisas minerais (o chão, a terra, a pedra) eram próprios do andarilho Bernardo em Livro de pré-coisas:

“Esse Bernardão é coisa indefinida. Igual um caramujo irrigado. Anda na terra como quem desabrocha” (LPC, p. 241).

Do aspecto telúrico emana a veia imagética do caramujo desabrochando em LPC. Intratextualmente, a imagem de Bernardo é revisitada no reino mineral em EVA:

“Vi uma lesma pregada
na existência
de uma pedra”
[...]
“Concha fechada
na beira do rio
só se abre no amanhecer”
(EVA, 2011).


OS PASSOS PARA A TRANSFIGURAÇÃO DE BERNARDO, subtítulo de poemas, foram poetizados em O guardador de águas (1989), por meio de murmúrios recitados sobre a tarde. Curiosamente o leitor haverá de constatar que ao final de O guardador de águas há um desenho, supostamente Bernardo voando, que é retomado ipsis litteris em Escritos em verbal de Ave, e um questionamento: ELE CONCLUIU O AMANHECER? Na capa final dessa última obra, há um epílogo-resposta para a explicação sobre a transcendência do ser já citada algures: “Deixamos Bernardo de manhã em sua sepultura/De tarde o deserto já estava em nós”.
À guisa de comprovação do enxerto proposto por Jacques Derrida e realizado pelo poeta Manoel de Barros, vamos ao diálogo de versos entre O guardador de águas (1989) e Escritos em verbal de ave (2011):


1
“Borboletas o adotam
por Petúnias” (GA).
2
“Privilégio do vento
semear
as borboletas” (EVA).

[...]
1
“Formigas carregam suas latas
Devaneiam palavras” (GA).
2
“Formigas
de bunda principal entram em casa
de fastos” (EVA).

[...]
1
“Um rio esticado de ave o acompanha” (GA).
2
“Os rios gostam
de entardecer
entre pássaros” (EVA).

[...]
1
“Pedras aprendem silêncio nele” (GA).
2
“Silêncio das pedras
é o início
das palavras” (EVA).

[...]
1
Bernardo “prende o silêncio com fivela” (GA).
2
Bernardo guarda no acervo “presilha de prender silêncios” (EVA).

[...]
1
No achamento do chão também foram descobertas as origens do voo” (GA).
2
Bernardo tem “um gosto elevado para o chão” (EVA).

[...]
1
E “no falar com as águas rãs o exercitam” (GA).
2
Bernardo viu “uma rã sentada nos braços da tarde”
“Profetas nasciam
de uma linguagem
de rãs” (EVA).


Por fim, em O guardador de águas, Bernardo se inventou e os passarinhos aveludaram seus cantos quando o viram. Em Escritos em verbal de ave, o desejo de Bernardo foi pintado nas palavras finais de sua morte:

“Queria que um passarinho
escolhesse minha voz
para seus cantos” FIM (EVA, 2011).


Em reflexão lírica, Bernardo transfigurou-se e sua imagem permaneceu na consagração incomensurável do instante. O leitor parece ser arrebatado pelo celestamento da poesia em formato de voz da natureza, instaurando a busca pela transcendência (vida após a morte). Bernardo era o “visionário nas origens da Terra” e a sua natureza, como requer os escritos de ave, não era ver, mas sim transver e, por excelência, transcender na própria linguagem da poesia.
E o que restou da alma de Bernardo em nós? Ora leitor, Bernardo, além do acervo de seus desobjetos, nos ensinou que o valor das coisas pode estar na completude das nossas próprias escórias existenciais, na ausência, no abandono do ser, na fragmentação do humano, no ser que estará sempre sendo, na incompletude do sujeito, na lembrança e no sonho. O valor da existência humana reina além do ver, está nas coisas que nossa alma não consegue tocar. Por conseguinte, “Quem não vê/o êxtase do chão/é cego” (EVA, 2011), já que “videntes não ocupam o olho para ver, mas para transver”. Assim, quem tem alma, ouça o que o espírito de Bernardo e a sua poesia dizem aos homens, tendo em vista que, os poemas são realidades humanas; não basta referir-se a impressões para explicá-las. É preciso vivê-las em sua imensidade poética”, escreveu Gaston Bachelard (1974, p.492) em A poética do espaço.

Rosidelma Fraga – postado no Portal Entretextos.

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