1957. Era manhã de maio, onde as flores nuas e a primavera do destino invadiam brutalmente a casa localizada próximo à Rua Esplanada dos Ministérios, ao lado do Lago da Presidência, no lugar de meditação e reflexão dos governantes e de curiosos que tentam cheirar episódios dramatizados pela mídia eletrônica, talvez com a intenção de serem destacados na primeira página do New York Times.
Ao que tudo demonstrava, o imóvel fora abandonado, há pouco, por tempo determinado, conforme resguardava o retrato sob o bilhete que eu li posto à mesa da sala central, próxima à alcova similar a um Jardim do Éden, garantindo ao meu leitor que eu (uma narradora e testemunha fiel) comprovei cada cena com olhar de microscópio, ainda que num ambiente mórbido, inconsciente, psicológico e sobrenatural, porém paradisíaco.
Assim dito, sob a cama repousava o vulto da mulher amada, cuja beleza vinha pintada no tecido emoldurado da colcha que lembrava o retrato falado de Ofélia, deusa do Príncipe dinamarquês, o então Hamlet e até mesmo a figura da amada de O retrato oval, de Edgar Allan Poe.
Ali disseminava o perfume do arrependimento, provocado pelo mais fugaz amor e, sobretudo, pelo efeito catártico do ciúme tão doentio e perverso quanto o amor de Otelo por Desdêmona.
Ao lado esquerdo do criado-mudo, o sangue, já homogêneo pelos dias, enegreceu ainda mais a alcova solitária da mesma forma que a alma nigérrima de Manon Lescault agonizava no sofrimento por amores proibidos.
O mistério soava no ar! Por tal razão, resolvi excelso leitor, desatar os fios desse conto do começo ao fim da meada. Confesso ainda que o místico incomensurável doravante iniciar-se-á, justo na década em que Getúlio Vargas optou pelo suicídio, ato comumente ao que presenciei sem complacência.
Sobressaltada, atirei fixamente na porta ao lado...
__ Céus! __ Soltei um grito quase que estático.
__ O quê? __ Mensurou o policial, com olhar de tremendo espanto...
__ Por que gritou?
__ Foi o vulto --- respondi olhando para todos os lados...
__ Por acaso o vulto é um ser vivo?
__ Em Hamlet e nesta narrativa real agora sim!
Poft! __ Caí. Tive um leve desmaio mortal, indo ao céu falar com Arcanjo em 5 minutos e 3 segundos; tudo isso por conta do medo que se instaurava em minha psique, ao testemunhar que a casa outrora fora habitação de férias de Getúlio Vargas. Aliás, a nota do Jornal relatava que o Presidente do Brasil morrera após concluir toda a biblioteca shakespeariana. Naquele tempo ainda não existia o Diário de um mago.
Entrei em transe medonho, tive pânico e tormentos até do espelho e da minha própria imagem refletida, tal como Narciso sem a beleza na água.
Com enormes temor e tremores, aos poucos, cuidadosamente, fui abrindo os olhos. Ergui-me do chão como o pássaro Fênix erguera-se das cinzas e agarrei a parede como se ainda estivesse conversando com Arcanjo Miguel ou com Lúcifer no caminho de volta do nevoeiro quando me deparei com algumas almas penadas...
Acendi imediatamente o lampião. Fui até os quartos dos fundos com uma inquietação e pulsação no peito, pensando nas baratas de G.H e no inseto piedoso de Kafka, do livro Metamorfoses, figuras as quais também encontrei no caminho do paraíso, assim como o Brás Cubas que partiu defunto-autor em décadas passadas que também tive a honra de trocar duas ou três palavrinhas sobre o enterro.
Sentei na poltrona empoeirada e alcancei o relato da ocorrência registrada num papel escrito à mão. Um mistério que descreverei na íntegra, para que você leitor, não tenha nenhuma dúvida quanto ao fim do inquérito. E espero que tome as conclusões verossímeis da investigação paulatinamente.
“Aos dias 19 de maio, ano de 1958, quando ainda a dama da noite estendera seu véu sobre o horizonte e revelara o amor proibido. Tratava-se do caso de um Senador Nélson Rodrigues, carioca, e Lígia, prostituta, vindo de Moçambique, com 17 anos, a qual fugindo das explorações nas ilhas africanas acabou tornando-se vítima de mais uma das catástrofes contra a mulher no Brasil que tanto pode ser de cor branca ou pele negra, todas, sem distinção de raça, religião se tornam objetos sexuais nas mãos de políticos que abusam dos “poderes”...
De fato, houve trevas quando tudo aconteceu. O céu rasgou seu manto em duas partes, toda nudez foi revelada e castigada. Na cama, desfaleciam os corpos de Nélson e Lígia, cujos rostos simbolizavam o romper da mais pura paixão em glórias e delírios...
Ao lado, o marido, policial, de 29 anos, apunhalado pela tragédia, dava seu último brado, imitando o Cristo na cruz do calvário. Na mão esquerda, a aliança caía, rompendo-se com o pacto do amor conjugal, ao passo que na mão direita, o revólver se posicionava estirado. Encerrava-se o inquérito de todo o sangue derramado naquela casa abandonada, um ano após o suicídio do Presidente da República.
Imagine o leitor que eu dei alguns passos pelo quarto, cuidando para não sujar meus pés de sangue. Esse, ora estava rígido, ora ainda flexível. Mais adiante, soltei fortes gargalhadas líricas como no teatro da semana de arte moderna com a declamação do poema Os sapos, do nosso querido amigo Manuel Bandeira. E foi assim, aos risos e aplausos que li uma epígrafe contida na folhinha empoeirada na parede, do livro Apocalipse. Transcrevo as palavras ipsis litteris:
“E lá no céu não haverá mais pranto, nem terror, nem dor. A morte não existirá... só herdarão o Reino os limpos de mão... ficarão de fora os adúlteros e os homicidas. Mas o Deus todo poderoso limpará dos olhos toda a lágrima e os justos viverão felizes para sempre”.
(Rosidelma FRAGA - Conto publicado na Revista Norte@mentos - Edição 7 Estudos Literários 2011/1.
Disponível em:
http://projetos.unemat-net.br/revistas_eletronicas/index.php/norteamentos)