Por que escrevo?
Escrevo para não morrer.

(José Saramago)

sábado, 28 de janeiro de 2012

[O ASSASSINATO DO LEITOR E DA LITERATURA NOS CURSOS DE LETRAS]

Por Rosidelma Fraga

(Texto melhor visualizado no link:http://www.portalentretextos.com.br/colunas/poiesis,269.html


Influenciada pela insônia que me toma sempre quando penso na morte e guiada pelo título ensaístico “O assassinato de Mallarmé”, de Silviano Santiago e da profecia poética de Stéphane Mallarmé “tudo existe, no mundo, para acabar em livro”, eu abri uma página para escrever um texto às avessas. Paradoxalmente ao que diz a frase célebre do poeta francês, descortino a palavra, a fim de ponderar um assunto que vem me perturbando desde o instante em que eu determinei ser professora de literatura, ao entrar para a Graduação em Letras e, paulatinamente vivenciar práticas pedagógicas na Educação Básica e no Ensino Superior. De forma brevíssima, meu objetivo fulcral aqui é dar algumas alfinetadas sobre o tema o assassinato do leitor e da literatura associado ao diploma conferido a um professor da área de Letras. Parece estranha a proposta, já que na própria envergadura e no corpo fônico da palavra LETRAS há o verbo LER. Por conseguinte, quem escolhe a licenciatura ou bacharelado em Letras será um leitor. Seria mais que óbvio se não fosse obtuso, diria meu amigo Roland Barthes.
Antes de tudo, assevero que não foi o Curso de Letras que me conduziu à literatura. Ao contrário, a poesia quem me levou a prestar vestibular para Letras que, por sorte celestial, havia a Universidade do Estado de Mato Grosso em minha terra-mãe. Mesmo almejando a Licenciatura em Música, diria que se eu tivesse que fazer outra graduação, em qualquer lugar do Brasil ou do exterior, eu escolheria Letras duplamente pela Literatura, apesar dos percalços e das pedras que vou encontrando no caminho para persistir na profissão desejada e amada.
Um leitor é assassinado sempre que as universidades e o MEC conferem o diploma a alguém que passou os quatro anos em busca da habilitação em Licenciatura Plena em Letras, sem ter se identificado com o curso, sem ser apaixonado por Literaturas e pela Língua Portuguesa roçando em nossa língua. É assassinado também sempre quando sai do curso sem compromisso com a formação do leitor, quando não vive o curso de corpo e alma. É assassinado desde o momento em que desejou cursar Medicina e, como não foi e nunca seria aprovado, resolveu prestar vestibular para Letras porque é o curso de menor demanda, não necessariamente o mais simplificado e de menos valor cultural ou com menos exigência de Leitura. Acredito que ser formado em Letras é mais que uma responsabilidade social, uma vez que a leitura legitima o homem. Em Vários escritos (2004, p.176), o professor Antonio Candido grafou: “a literatura confirma a humanidade do homem”. Ela contribui para “a formação da personalidade [por ser] uma forma de conhecimento do mundo e do ser”. Logo, a leitura deve estar adiante de todo e qualquer diploma, mormente o de Licenciatura Plena em Letras.
Assim, defendo que a exigência no mencionado curso deveria ser mais austera e a disputa pelo diploma deveria ser acirrada como jogar e ganhar na mega sena. Escrevo isso porque a nota de corte na seleção do vestibular para Letras nas regiões periféricas do país é insignificante em relação aos cursos de maior demanda. A maioria dos candidatos que passa para Letras normalmente lê resumo de obras literárias e redige muito mal. E isso não é uma metáfora, muito menos um discurso ficcional. O candidato aprovado passa o curso inteiro tentando se enganar e ludibriar alguns professores que, muitas vezes, se parecem mais com “padrinhos”, dando de presente sempre um “jeitinho de brasileiro” com oportunidades a certos alunos que estão muito mais preocupados com qualquer DIPLOMA DE CURSO SUPERIOR do que com a FORMAÇÃO DE LEITORES.
Por causa de tal objetivo que diverge dos objetivos do Curso de Letras, eu fui me transformando numa sadista em matéria de exigência. A leitura deve ser prazerosa? Indubitavelmente. Mas para um professor, leitura por prazer e leitura por obrigação devem ter uma relação cordial de sinonímia, independente do que diz uma regra gramatical. Eu tenho consciência de que me tornei um ser humano antipático, já que nem sempre é possível despertar o prazer pela leitura em alguém que escolheu o curso errado. Aprendi que não há nada mais prazeroso para um professor do que apreciar um aluno não-leitor jubilando no curso. Seria mais ou menos que ver a queda do World Trade Center e rir liricamente em vez de chorar. Parece puro sadismo misturado a masoquismo que, em literatura pode até virar Katharsis. Ao ser jubilado, o ex-futuro professor estará salvando diversos leitores dos escombros sociais. Haverá menos um professor que lê pouco e lê mal para prejudicar uma sala de aula inteira depois de sua formação.
Posteriormente a licenciatura em Letras, esse assassino da literatura jamais passará em concurso público para altos cargos federais. Quem não ama literatura irá amar leis e códigos? O certo é que o “habilitado” em Línguas e respectivas literaturas será um pobre, perdido e fracassado. Entre ser carregador de feira livre como o João Gostoso do “Poema tirado de uma notícia de jornal” e ser professor, a última opção será mais apropriada. Com o diploma na mão, lá vai o miserável assassinar leitores. Mesmo não sendo aprovado em concursos públicos para professor, abrirão vagas para contratação nas redes municipais e estaduais e o governo economizará a metade do salário nos cofres públicos porque a preocupação com a educação é uma falácia. E a partir desse momento inicia-se a “bola de neve” para o professor formador de professores.
E o que uma bola de neve tem a ver com formação de leitor? Entendamos que o professor mal formado irá cultivar outros maus leitores que nem saberão a diferença desse mal com l e mau com u que usei propositalmente. E esses miseráveis que não são os mesmos miseráveis de Victor Hugo poderão entrar para o curso de Letras pelos mesmos pretextos de seu professor de português. Resultado: mais um leitor irá morrer de sede com tantos livros na biblioteca das faculdades de letras que vão se espalhando por todos os cantos periféricos do país. E o que o professor está fazendo se o problema sempre existiu? Cabe a cada um responder a si mesmo.
Como toda crítica, ainda que não hegemônica, deve seguir de uma presumível solução, a minha recomendação é mais que uma reflexão: “faça um bem para a educação, evite divulgar matérias com quantidade de formados em Letras. Priorize a qualidade do leitor que deve vir antes do professor graduado, especialista, mestre, doutor ou pós-doutor. Antes do nome de uma pessoa da educação seria mais interessante inserir Professor-Leitor fulano de tal em vez de Professor Doutor fulano de tal. Nunca apreciei essas exuberâncias e estrelismos pelo simples fator título ou altamente obrigatório e recomendável pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Evite uma tragédia brasileira. Promova o mesmo bem que Misael fez para Maria Elvira. Em som de paródia a Manuel Bandeira: tire uma Elvira da rua, trate-a com livros e folhas de papel couché. Dê um livro como abrigo, nem que ela descubra o prazer de ter como diversos amantes: José de Alencar, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Drummond, Cecília Meireles, Gerardo Mello Mourão, Mia Couto, José Saramago, Lídia Jorge, Ezra Pound, Victor Hugo, Honoré de Balzac, Gustave Flaubert e tantos outros autores da literatura nacional e internacional. Faça cada leitor levantar pela manhã e ler Homero, Virgílio, Camões (lírico e épico), Petrarca, as obras fundamentais da literatura portuguesa e brasileira, incluindo a Literatura Africana de Língua Portuguesa, ainda que Maria Elvira (metonímia para leitor) seja uma lésbica apaixonada por Safo, a décima musa na ilha de Lesbos. Somente assim, a literatura será liberta e o leitor não ficará acorrentado como Sísifo. Lembre-se de Mário Quintana: “quem faz um poema salva um afogado”. Afinal, poetizou um artista pernambucano/goiano chamado Jamesson Buarque (2011) que considero como um professor realmente leitor: “Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé: A história de uma pessoa é a história do planeta”.

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